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Café, Canela & Chocolate

O site da autora Sofia Serrano. Conversas de uma mãe, que é médica Ginecologista/Obstetra e adora escrever. Com sabor a chocolate.

Café, Canela & Chocolate

O site da autora Sofia Serrano. Conversas de uma mãe, que é médica Ginecologista/Obstetra e adora escrever. Com sabor a chocolate.

Afinal, não é boa ideia sermos médicos quando crescermos

Avatar do autor , 19.09.14



Desde pequenos que aprendemos que há profissões que garantem uma boa qualidade de vida. Que nos permitem ter uma casa com jardim e piscina, empregada interna e cozinheira, um carro topo de gama, passar férias em destinos paradisíacos e ter os filhos nos melhores colégios. Vestir roupas de marca e ter tecnologia de ponta.

E que se não temos jeito para futebolistas, então o melhor é sermos médicos.

Toda a gente sabe que o senhor doutor tem um carro dos bons e passa sempre férias no estrangeiro. Que se veste bem e que tem os filhos na melhor escola.

Mas na verdade, o senhor doutor trabalha em média 40 horas no hospital e faz várias urgências extra por falta de pessoal – e tem um horário incompatível com a escola pública, por isso não tem outra hipótese se não ter os filhos num colégio, para os poder ir buscar mais tarde. Pelas 40 horas (depois de 6 anos de curso, 1 de ano comum e entre 4 a 6 anos de especialidade), e porque é funcionário público e tem direito a todos os cortes, recebe em média 1400 euros. Para conseguir manter os filhos no colégio (e sustentar o resto das despesas, como a casa e o carro) trabalha em mais três outras clínicas. Como já tem 40 horas de trabalho no hospital, tem de fazer consultas depois de sair de urgência, e ao fim de semana. Ou ao fim da tarde, depois do horário de trabalho no hospital. Chega a casa tarde e cansado, e tenta ter disponibilidade para os filhos, para ajudar nos trabalhos de casa e para saber como foi o dia. E para a mulher. Tem o telemóvel disponível para as urgências dos seus doentes e passa a maioria dos fins de semana a trabalhar – e tenta poupar para no período de férias poder fazer aquela viagem que a família sonha.

O senhor doutor tem no fim do mês um ordenado razoável, porque passa os dias a trabalhar. Anda numa correria diária entre 4 trabalhos, e ainda tenta ser um pai presente. Às vezes, os doentes zangam-se ou ficam revoltados porque ele sai do consultório enquanto esperam. “Não me digam que ele tem a lata de ir almoçar?” – ouve-se às vezes. Geralmente come uma empada e bebe um sumo em 5 minutos, e vai à casa de banho em menos tempo – para conseguir atender toda a gente o mais depressa possível. Mas isso os doentes não sabem, só sabem que o senhor doutor se ausentou.

O senhor doutor ama a sua profissão. É por isso que continua neste ritmo louco, num trabalho que afinal não é assim tão bem pago – e que só lhe permite ter a vida que tem porque trabalha ainda mais.

A medicina é tudo para ele. E não se imagina a fazer outra coisa. Mas explica ao filho que se quer ter uma vida boa e tranquila, se calhar é melhor aprender desde cedo a jogar à bola. Aprender uma língua estrangeira. Ou tentar ganhar o euromilhões.


(uma crónica ICote, mais todas as sextas-feiras)

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