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Café, Canela & Chocolate

O site da autora Sofia Serrano. Conversas de uma mãe, que é médica Ginecologista/Obstetra e adora escrever. Com sabor a chocolate.

Café, Canela & Chocolate

O site da autora Sofia Serrano. Conversas de uma mãe, que é médica Ginecologista/Obstetra e adora escrever. Com sabor a chocolate.

Confissões de uma médica (II)

Avatar do autor , 03.06.15

Naquela manhã sentia-se o cheiro a maresia no ar. 
Havia o frenesim habitual num terminal de transportes públicos e as pessoas corriam e acotovelavam-se para chegar a tempo. A margem norte não se via, pelo nevoeiro matinal, mas ela estava ali, a uma curta distância. 
Atravessar o rio naquele primeiro dia na faculdade significava uma espécie de chegada à meta. A miúda da margem sul, das escolas públicas, ia ser a primeira da família a ir para uma faculdade de medicina, e, correndo tudo bem, a ser médica um dia. 
Tinha aquela sensação de ter uma série de borboletas a esvoaçar na barriga e lembro-me que pensei que dentro em breve iria perceber a parte fisiológica responsável por aquilo: devia haver uma série de hormonas e processos complexos que me levavam a sentir aquele friozinho, e que eu teria de saber na ponta da língua. 
Era outubro, mas os dias ainda estavam bons. Tinha passado um verão inteiro em suspenso, sem saber se iria mesmo conseguir entrar para a Medicina. Tinha feito os exames nacionais todos na primeira chamada, em Junho, e depois de preencher os papéis de candidatura à faculdade, e de algumas horas a decidir a ordem da escolha, restava-me esperar. O verão parecia interminável – foi provavelmente a única vez na vida que senti isso. 
Quando em setembro saíram finalmente as colocações na faculdade, soube que a nota de entrada em medicina tinha sido 18,2 valores. Uma média elevadíssima, que só permitia a entrada a muito poucos. Nessa altura só havia 5 faculdades em Portugal: duas em Lisboa, duas no porto e uma em Coimbra, e poucas vagas, o que fazia que só entrassem os que tinham melhores notas. 

Havia sempre debate acerca da justiça de todo este processo de entrada e era pouco consensual que um aluno de 19 pudesse ser melhor médico que um de 17, porque os médicos não se fazem só de algarismos, como vim a perceber ao longo destes anos. Mas regras eram regras e o processo de entrada era assim, e mantém-se na mesma. Apesar da ansiedade de saber se tinha entrado para a faculdade que queria, estava relativamente confortável com uma média final acima de 19 – mas queria saber se conseguia ficar em Lisboa, como pretendia. 
Mais uma vez, no dia da saída das colocações, a comunicação social deu destaque à nota de entrada para medicina. Houve uma série de reportagens para tentar perceber quem tinha entrado e como se conseguia chegar lá – afinal era preciso ser-se um génio para conseguir aquelas notas fabulosas? Andar nos melhores colégios? Ter-se apoio económico  para poder ter apoio extra escolar dos melhores professores? 
Parece-me que não há uma resposta única, e que cada caso é um caso. 
Uma coisa é certa: é preciso trabalhar muito. 
Passar horas a estudar, estar concentrado nas aulas. Mas depois é preciso conseguir gerir o stress dos exames, a ansiedade que muitas vezes nos turva o conhecimento. 

Tive a sorte de ter uma mãe professora de Biologia, o que fez com que desde pequena sempre me sentisse muito à vontade nessa área. Lembro-me de ter uns seis anos e de ir com a minha mãe às aulas de Biologia que ela dava nessa altura: desenhei a estrutura das células, que ela ensinou aos alunos e acho que nunca mais me esqueci. E em casa adorava ver na televisão uma série originalmente francesa, que tinha sido traduzida para português como “Era uma Vez a Vida”. Ela mostrava muitas vezes nas aulas alguns desses episódios, e eu tinha curiosidade em aprender tudo sobre o corpo humano e não perdia um. Estas coisas ajudaram-me muito no meu percurso durante o ensino secundário e até antes. Mas no geral, parece-me que sempre consegui ter boas notas porque gostava de aprender coisas novas. 
Foi graças ao meu pai que ganhei o gosto pela escrita e devorava livros desde que aprendi a ler – o primeiro livro a sério que li foi um da colecção portuguesa “Uma Aventura”, tinha sete anos e foi comprado numa feira do livro na margem sul. Acho que na altura os meus pais não acreditaram que o conseguisse ler, porque estava no primeiro ano da escola e só sabia ler frases, que era essencialmente o que se aprendia no início da escola primária. O “Uma Aventura na Escola” foi lido nesse verão e outros se seguiram. 
Acabei por ter facilidade em português e adorava escrever composições e imaginar histórias. E em História, tive a ajuda do meu pai, que tinha sido professor da disciplina, e me contava pormenores que não vinham nos nossos livros escolares e que alimentavam a minha imaginação. Devo muito aos meus pais os bons resultados que tive, porque me motivaram e me mostraram que o mundo é uma caixinha recheada de coisas para descobrir. E assim, as boas notas foram surgindo naturalmente.
No ensino secundário, a minha mãe, professora, achou que eu precisava de ter algum apoio para garantir bons resultados nos exames nacionais, poder ter uma média confortável e escolher o que queria para o futuro, sem condionamentos. Por isso, no 12º ano tinha uma vez por semana uma hora de treino em exercícios de matemática e outra de química com duas professoras excepcionais. Acima de tudo, acho que aprendi uma série de técnicas para lidar com os possíveis desafios que me fossem colocados nos exames e treinei a resolução de uma série de problemas, de vários pontos de vista. Aprendi que na véspera de um exame, não se ganha nada em querer estudar e rever – essa minha professora de matemática dizia-nos sempre, a mim e a outro amigo, que o dia antes do exame era dia de fazer uma mousse de chocolate, comê-la lentamente, e ir ao cabeleireiro. 

Ou seja, o stress de última hora não seria nosso amigo. 
Acho que esta foi uma das lições que retive para a vida e que uso sempre que tenho datas importantes.

                                




Um parto-quase-perfeito

Avatar do autor , 02.06.15

Se eu pudesse escolher, queria ter um parto tranquilo. 
Queria uma gravidez sem stress, e chegar perto das 39-40 semanas e começar com contracções, depois de um dia a preparar o quarto do bebê. 
Queria manter-me descontraída, aguentar as contrações até à última da hora, ir para o hospital e descobrir que já tinha a dilatação completa. Não ter tempo para a epidural, mas ter capacidade de me controlar, tolerar a dor e fazer força na altura certa.  Chorar de emoção com o meu bebe no peito, deixar o pai cortar o cordão.
Hoje foi mais um dia assim, com um parto-quase-perfeito, daqueles que me deixam com uma pontinha de inveja, por não ter tido a sorte de um parto assim. Costumamos dizer que com o pessoal "da casa" , ou seja, quem trabalha no hospital, há sempre alguma coisa que corre fora do planeado. 
Os meus partos saíram completamente deste meu plano-quase-perfeito. Não entrei espontaneamente em trabalho de parto, tive de induzir depois das 40 semanas porque eles não queriam nascer,  a indução demorou, não tolerei a dor, não me consegui controlar como queria, supliquei por uma epidural. Tive um parto por ventosa e depois uma cesariana. Tive complicações da epidural. 
Mas passava por tudo outra vez, pelo momento único em que os seguramos pela primeira vez, sentimos a sua pele macia, o cheiro bom a recém nascido- o que acaba por ser, na mesma, um parto-quase-perfeito, apesar de andar longe do que imaginamos inicialmente.
                     
                                 
    
       
          
 

Ser médico

Avatar do autor , 06.05.15

Quando decidi que queria ir para Medicina, decidi que queria ser médica para ajudar os outros. Não era pelo dinheiro. O que eu gostava mesmo era de ter dinheiro à farta, e fazer consultas sem cobrar nada, porque sempre achei que esse era o verdadeiro espírito médico, aquele em que a saúde do nosso doente está em primeiro lugar, como repetimos no juramento de Hipócrates. 
Tenho o sonho de montar uma clínica gratuita, com material e medicamentos à farta, e poder fazer consultas a quem precise, sem as pessoas terem de perguntar quanto é que vai custar aquele exame ou aquela análise, e me dizerem que não podem comprar aquele medicamento que é o indicado para ficarem melhores. Dizer : "não se preocupe, aqui o que interessa é a sua saúde" ou "em primeiro lugar está você e o seu bebé, o dinheiro aqui não importa". Sim, eu sou uma sonhadora.
Mas nos dias que correm, esquecer o dinheiro é impossível. Há despesas com os filhos, com a casa, com o carro. Por isso, trabalho como os outros trabalham, recebo pelo meu trabalho, aquilo que o estado acha que mereço, ou o que as seguradoras acham que deve ser pago. Não sei bem qual seria o valor ideal, mas sei que há muita gente a ganhar mais que eu, e muitíssima gente a ganhar bem menos, ou numa situação de não ter quase nada.
Por isso, trabalho, e sonho. E sempre que posso, entro em projectos em que acredito, mesmo que isso signifique trabalhar e não ter retorno financeiro. Ganho paixão pelo que faço e a sensação que faço a diferença na vida de alguém.
E não desisto de sonhar.
Quem sabe, um dia, os sonhos se realizem.

Fotografia: Vasco Celio

Burnout : os médicos não são de ferro

Avatar do autor , 10.04.15

Muitos acham que os médicos são imunes a qualquer doença e às vezes até se esquecem que são pessoas normais. Mas na realidade, ser médico significa estar constantemente exposto a stress, trabalhar muitas horas, ter um desgaste físico e psicológico intenso. E os médicos não são de ferro.
O burnout é um síndrome de esgotamento profissional, que afecta milhões de trabalhadores em todo o mundo, mas no topo das profissões afectadas estão os médicos. Estudos mostram que 46% dos médicos sofrem burnout em algum momento da sua carreira. Ocorre principalmente em profissionais submetidos a elevados níveis de stress e pressão no ambiente de trabalho.

A dedicação exagerada à atividade profissional é uma característica marcante do burnout, mas não a única. O desejo de ser o melhor e demonstrar sempre um alto grau de desempenho é outra fase importante da síndrome: o portador de burnout mede a auto-estima pela capacidade de realização e sucesso profissional.

burnout pode comprometer o trabalhador em três âmbitos: individual (físico, mental e social), organizacional (conflito com colegas e diminuição da qualidade/produtividade) e profissional (negligência, lentidão e impessoalidade com colegas e terceiros).
 
As médicas jovens e solteiras são as mais afectadas por esta perturbação e os sintomas mais comuns são: perda do entusiasmo, distanciamento emocional, exaustão, perda do sentimento de realização pessoal, sentimentos de cinismo.
 
 

Top 10 das especialidades mais afectadas pelo Burnout:


1º Medicina Intensiva


2º Medicina de emergência

3º Medicina Geral e Familiar

4º Medicina Interna

5º Cirurgia Geral

6º Infecciologia

7º Radiologia

8º Ginecologia e Obstetrícia

9 ºNeurologia

10º Urologia

As especialidades menos afectadas são Patologia Clínica, Psiquiatria e Dermatologia.

Os elevados índices de burnout entre médicos afetam indiretamente o funcionamento do sistema de saúde e pioram diretamente a qualidade do atendimento ao paciente.
As principais causas do burnout médico são:
- Impossibilidades burocráticas e económicas para prover o melhor atendimento aos pacientes;
- Excesso de horas de trabalho e redução do convívio social;
- Ganhos económicos abaixo do esperado.

Os médicos não são de ferro. Também é preciso tratarmos de nós. Compreender os nossos limites, partilhar problemas e valorizar o lado social da vida são fundamentos que devemos aplicar na prática diária. Cuidar de nós mesmos deve ser uma das prioridades para que possamos cuidar ainda melhor dos nossos pacientes.
 
 
 

5 razões para as urgências hospitalares andarem longe da perfeição

Avatar do autor , 06.02.15


Em pleno inverno, e em altura de pico da gripe, as notícias de caos nas urgências hospitalares sucedem-se. Horas infindáveis de espera, incapacidade de dar resposta, profissionais e utentes descontentes. Os políticos responsáveis pela saúde dizem que está tudo bem e melhor que há alguns anos atrás, os políticos que gostavam de ser responsáveis pela saúde argumentam que está tudo cada vez pior.
Na perspectiva de quem trabalha semanalmente num serviço de urgência (às vezes duas vezes durante a semana), há claramente razões para que o funcionamento das mesmas ande longe da perfeição:

1. Falta de recursos humanos.


Nao vale a pena atirar areia para os olhos: médicos, enfermeiros e auxiliares são menos que há alguns anos. A política de contenção levou a que não se renovassem contratos, e as equipas de urgência estão desfalcadas. Houve muita gente a pedir reforma antecipada, outros optaram por sair do país. Também temos de contar com o facto de a partir dos 50 anos ser possível deixar de fazer trabalho nocturno, e a partir dos 55 anos os médicos poderem mesmo deixar de prestar serviço de urgência. E depois temos pouca gente a fazer o trabalho de muita, e a exaustão instala-se, com repercussão no trabalho – e na saúde das pessoas (utentes e profissionais).

2. Falta de material.

Mais outro assunto tabu, que às tantas ninguém confirma nem desmente, com medo de represálias. A verdade é que há inúmeros casos relatados por todo o país de escassez de material básico, como luvas, gel, resguardos para as marquesas ou papel e toners para as impressoras. Podem faltar vacinas ou reagentes para fazer determinadas análises. A ideia principal é a contenção, por isso o investimento em material para que nunca falte parece ser coisa do passado. É claro que os fornecedores só entregam depois do pagamento, o que torna o dia a dia na urgência numa estratégia de gestão de quem lá está, com o que efectivamente há disponível para o diagnóstico e tratamento dos doentes.

3. Falta de recursos nos cuidados primários de saúde – os Centros de Saúde

Mais de um milhão de portugueses não têm médico de família. Ora o médico de família é fundamental no bem-estar de toda uma família, vigiando a saúde, prevenindo a doença. É no Centro de Saúde que se devem fazer rastreios e despistes de inúmeras doenças e incentivar uma vida saudável. Se não temos médico de família, então tudo se desmorona pela base – e vamos ter, com certeza mais pessoas doentes, e mais recurso ao serviço de urgência e hospitais.

4. Falta de condições sócio-económicas para sobreviver ao Inverno (e ao dia-a-dia)

Lembramo-nos sempre da Troika cada vez que se pensa em contenção e crise. O que é facto é que temos todos menos dinheiro para aquecer as casas, para alimentos saudáveis, para ir regularmente ao médico. E se pensarmos nos milhares de idosos que vivem sozinhos e não têm condições, por exemplo, para aquecer a casa perante temperaturas muito baixas, então temos de pensar que a probabilidade de adoecerem é muito elevada. E por isso, vão recorrer inúmeras vezes aos serviços de urgência.

5. Falta de informação da população

Quem trabalha numa urgência constata que uma percentagem assustadoramente elevada de doentes que lá recorrem não têm um motivo urgente para ser vistos. Muitas das vezes têm um determinado problema há meses, e por não terem médico de família acabam por recorrer ao hospital. Ou querem fazer um teste de gravidez. Ou mil-e-uma-outras-razões que têm pouco de urgente, e que implica que esperem horas, porque a triagem vai dar prioridade às situações efectivamente urgentes. Claro que todos os doentes acabam por ser vistos, porque até se ter o diagnóstico final, não podemos rotular de “situação não urgente”, mas muitos evitariam estar ali horas há espera se soubessem que é fundamental recorrer primeiro ao médico de família – e ele sim, se constatar que é uma situação urgente, referencia para o hospital ou para onde achar adequado.

Mas provavelmente já toda a gente sabe destes pontos anteriores. 

E aposto que muitos experts em gestão já se debruçaram sobre o problema, na tentativa de o resolver. O que é facto é que o cenário não é bonito. E é preciso arregaçar as mangas e fabricar soluções, porque Portugal tem dos melhores serviços nacionais de saúde a nível mundial – e não o queremos estragar.

(esta crónica e outras aqui)






Eu não quero ser uma Ellis Grey

Avatar do autor , 16.01.15

Conheço uma Meredith Grey. 
Não a actriz da famosa série, mas um caso muitíssimo parecido ao que inspirou Shonda Rhimes a criar a personagem. Uma filha que na realidade quase não teve mãe, porque a mãe, excepcional no seu trabalho, dedicava-se a 100% à Medicina. E no meio da sua azáfama diária, pouco via a filha, que cresceu numa adolescência rebelde e acabou ela própria por decidir ser médica - com a consciência de que não iria querer ser uma mãe como a sua. Agora, a mãe que foi médica-a-tempo-inteiro, foi prematuramente afastada da profissão pela mesma razão da excepcional cirurgiã Grey da série, e é a filha que vai percorrer o caminho da mãe, esperando fazer melhores escolhas.

Este e outros casos que conheço levam-me sempre a repensar os meus dias e as minhas escolhas. Adoro a minha profissão, mas a coisa mais importante da minha vida são definitivamente os meus filhos. Fui muito criticada por decidir engravidar durante o internato, e tive de ouvir mil-e-um sermões por gozar os meus direitos, contemplados na lei, de deixar de fazer urgência nocturna a partir de um determinado tempo de gravidez, gozar licença de amamentação e ficar em casa com os meus filhos quando eles estão doentes. E muitos estranhavam porque é que eu não queria trabalhar noutros sítios durante o internato. 
Temos de fazer escolhas na vida, é inquestionável. 
E tentar gerir o nosso tempo o melhor possível. 
Desde o momento que decidi ter filhos (ou antes ainda), decidi que queria ser a melhor mãe possível para eles. Que queria ser uma mãe presente. 
Tenho consciência que tenho uma profissão muito exigente, mas não há nada melhor que os poder ir buscar cedo à escola, conversarmos sobre o dia que passou, brincarmos juntos ao chegar a casa, dar-lhes banho, jantarmos juntos (excepto o dia de urgência, que eles já sabem que é o dia em que a mãe-fica-a-ajudar-os-bebés-a-nascer e é o pai que trata de tudo).
Isto implica fazer o horário no hospital e limitar o que poderia fazer fora dele, de forma a ter tempo disponível para mim e para os meus filhos. Por isso, não tenho um carro topo de gama, nem empregada interna, nem vivo numa maravilhosa moradia, nem visto Chanel.
Mas estou presente. Conheço os meus filhos. Brincamos juntos mais do que os 10 minutos que os pediatras tanto apregoam como "o mínimo". Estive presente nos momentos importantes - e espero estar sempre.

Não. Eu não quero ser uma Ellis Grey.



7 coisas que é preciso ter para se ser médico

Avatar do autor , 10.01.15

                                         

Não sei se escolher ser médico tem a ver com a vocação ou se é simplesmente uma opção, que pode estar relacionada com mil-e-um motivos, desde o económico ( que não é, nem de longe, nem de perto a remuneração que sonhámos) ao facto de ainda ser um dos poucos trabalhos que tem garantido emprego no nosso país (este último ponto em mudança acelerada). Mas independentemente do que nos leva a medicina, há certas características que precisamos de ter (ou cultivar) para sobreviver neste complexo mundo dos hospitais, clínicas e centros de saúde:

1. Desprendimento de horários. 
Um médico tem como todos os profissionais, um horário estabelecido, é controlado nos dias que correm pelo fantástico ponto digital. Em média fará 40 horas por semana, mas isto varia de acordo com as horas extraordinárias que precisa de fazer em contexto de urgência. Mas não só. Os médicos sabem que é quase impossível seguir um horário à risca. Imagine-se um cirurgião, cuja cirurgia era mais complexa que se imaginava à partida: não pode chegar às 17h, como o técnico da repartição das finanças e dizer “Meus amigos, por hoje acabamos. É impossível atender mais gente, amanhã continuamos”. O cirurgião não vai sair para ir picar o ponto, e muito menos pode abandonar o bloco operatório. O cirurgião tem de continuar, até a situação estar controlada e o doente tratado. E pode ser necessário ficar mais duas horas a operar, ter de pedir para lhe ligarem à escola dos filhos a avisar que vai chegar mais tarde ou que não vai conseguir chegar a tempo ao jantar com os amigos que estava combinado há meses.

2. Resistência física. 
Ser médico é muito mais que ficar sentado atrás de uma secretaria. É preciso estar em forma, porque há urgências que significam saltar da cadeira e subir dois pisos a correr, para ir responder a uma paragem cardio-respiratória no serviço de Medicina. É preciso passar horas em pé no bloco operatório, a segurar um afastador, para o colega poder completar aquela cirurgia complexa. É preciso aguentar 24 horas de urgência, entre cesarianas, partos e cirurgias, e estar no seu melhor quando está quase na altura da sua saída e é preciso ajudar um bebé a nascer com o auxílio de uma ventosa. 

3. Dieta (forçada) constante. 
Cada vez mais o médico é pressionado para aumentar a sua produtividade. E quando antes via 5 doentes numa manhã, com tempo para fazer uma boa história clínica e um exame objectivo cuidado, agora tem de fazer 20 no mesmo período de tempo. Portanto, ou quase não vê os doentes, ou tem de abdicar das suas necessidades básicas – como ir à casa de banho ou fazer uma refeição- para ganhar tempo e poder continuar a fazer um bom trabalho. Por isso, não tem tempo para comer a meio da manhã, salta o almoço ou come uma sopa à pressa para não se atrasar para as actividades da tarde.

4. Tolerância e empatia. 
Apesar das condições de trabalho serem complicadas e de ter de arranjar soluções para os problemas que vão surgindo, o médico tem frequentemente reclamações. E queixas. Doentes exaltados, aos gritos, que já esperaram 5, 10, 20 horas num serviço de urgência. Que acham que a sua situação é prioritária. Que se queixam do espaço físico. Que não podem chegar atrasados ao trabalho e exigem que sejam resolvidos os seus problemas. O médico tem de ter capacidade de respirar fundo, e explicar a razão dos atrasos, ou da falta de material, ou de tempos operatórios. Tem de se manter calmo, e tentar compreender o outro lado, apesar de muitas vezes ter vontade de se exaltar também. Tem de fazer o melhor que pode e tentar fazer passar essa mensagem – e continuar.

5. Insight. 
O médico tem de ter aquela capacidade quase mágica de olhar para uma situação é conseguir lê-la, que é como quem diz, saber o que o doente tem pouco depois de se ter sentado na cadeira do consultório. No fundo, o médico tem de desenvolver a sua intuição, fundamentada em tudo o que vai estudando, aperfeiçoada pelo seu trabalho diário. E saber resolver a situação o mais rapidamente possível.

6. Espírito de sacrifício. 
É impossível ir para Medicina se não se estiver disposto a abdicar de algumas coisas, em prol dos doentes. Podem ser férias, porque não há mais ninguém para fazer urgências em Agosto, pode ser a festa de fim de ano dos filhos, porque a cirurgia demorou mais que o previsto, podem ser noites de sono no conforto do lar, porque é preciso que alguém veja doentes à noite, porque ninguém escolhe horas para adoecer. 

7. Paixão. 
Acima de tudo, é preciso gostar do que se faz. Amar. Sentir que é aquilo que queremos fazer para o resto da vida, caso contrário, todos os pontos anteriores terão sido em vão. E ter a noção que, afinal, os médicos até são mal pagos, por isso, temos de ser felizes com a sensação que fazemos coisas boas todos os dias.



Já tenho planos para o ano novo

Avatar do autor , 27.12.14

                                            

Já tenho planos para o ano novo. 
Ou melhor, programa para a passagem de ano, tudo minuciosamente planeado : tenho roupa escolhida, calçado, acessórios. Local e companhia. A maquilhagem vai ser leve e vou dispensar os brilhantes. Nada de salto alto, nada de anéis nem unhas pintadas. O mesmo sorriso de sempre na cara (espero).
Bom, talvez não esteja tudo assim tão bem planeado, porque tudo o resto faz parte da imprevisibilidade da vida: à meia-noite tanto poderei estar a beber uma taça de champanhe e a comer as doze passas, como poderei estar de bisturi na mão, a ajudar a vir a este mundo mais um bebé. Se calhar até poderá ser o bebé do ano. Ou alguém que daqui a algumas décadas ocupe o cargo de primeiro-ministro português (num país finalmente fora da crise), um futuro Cristiano Ronaldo ou um bancário de um dos novos bancos que vão surgindo.
A verdade é que quando nos aproximamos do final do ano, temos tendência a fazer um balanço do que passou. E depois decidir o que gostaríamos para o futuro. 
Eu não sou muito de fazer balanços nem listas de decisões para o ano que vai vir. Mas uma coisa sei: 2014 foi um ano de desafios extraordinariamente difíceis. Desde o trabalho (com cada vez mais portugueses a procurarem soluções fora do país, e condições de trabalho em deterioração), passando pela saúde (com cada vez mais problemas nos nossos hospitais e centros de saúde, que vamos resolvendo à custa da boa-vontade de todos), pela família (a natalidade a descer assustadoramente e os apoios sociais a serem insuficientes), pela política (crises a sucederem-se e a percebermos que afinal nada é como pensávamos), até pelo clima (com um ano sem estações e com dias de clima extremo inesperado). 
Mas as coisas boas acontecem todos os dias – só precisamos estar atentos. Apesar de tudo há bons amigos, bons colegas, boas famílias. Pessoas que se preocupam. Momentos únicos. Dias de sol.
E o carrossel continua sempre a girar. Por isso, apesar de não fazer listas de decisões para 2015, o blog vai continuar. E as “Crónicas de Saída de Urgência” também. E espero dentro em breve trazer mais novidades (porque o sonho comanda a vida!)
Que o ano 2015 nos traga muitas coisas boas!













Afinal, não é boa ideia sermos médicos quando crescermos

Avatar do autor , 19.09.14



Desde pequenos que aprendemos que há profissões que garantem uma boa qualidade de vida. Que nos permitem ter uma casa com jardim e piscina, empregada interna e cozinheira, um carro topo de gama, passar férias em destinos paradisíacos e ter os filhos nos melhores colégios. Vestir roupas de marca e ter tecnologia de ponta.

E que se não temos jeito para futebolistas, então o melhor é sermos médicos.

Toda a gente sabe que o senhor doutor tem um carro dos bons e passa sempre férias no estrangeiro. Que se veste bem e que tem os filhos na melhor escola.

Mas na verdade, o senhor doutor trabalha em média 40 horas no hospital e faz várias urgências extra por falta de pessoal – e tem um horário incompatível com a escola pública, por isso não tem outra hipótese se não ter os filhos num colégio, para os poder ir buscar mais tarde. Pelas 40 horas (depois de 6 anos de curso, 1 de ano comum e entre 4 a 6 anos de especialidade), e porque é funcionário público e tem direito a todos os cortes, recebe em média 1400 euros. Para conseguir manter os filhos no colégio (e sustentar o resto das despesas, como a casa e o carro) trabalha em mais três outras clínicas. Como já tem 40 horas de trabalho no hospital, tem de fazer consultas depois de sair de urgência, e ao fim de semana. Ou ao fim da tarde, depois do horário de trabalho no hospital. Chega a casa tarde e cansado, e tenta ter disponibilidade para os filhos, para ajudar nos trabalhos de casa e para saber como foi o dia. E para a mulher. Tem o telemóvel disponível para as urgências dos seus doentes e passa a maioria dos fins de semana a trabalhar – e tenta poupar para no período de férias poder fazer aquela viagem que a família sonha.

O senhor doutor tem no fim do mês um ordenado razoável, porque passa os dias a trabalhar. Anda numa correria diária entre 4 trabalhos, e ainda tenta ser um pai presente. Às vezes, os doentes zangam-se ou ficam revoltados porque ele sai do consultório enquanto esperam. “Não me digam que ele tem a lata de ir almoçar?” – ouve-se às vezes. Geralmente come uma empada e bebe um sumo em 5 minutos, e vai à casa de banho em menos tempo – para conseguir atender toda a gente o mais depressa possível. Mas isso os doentes não sabem, só sabem que o senhor doutor se ausentou.

O senhor doutor ama a sua profissão. É por isso que continua neste ritmo louco, num trabalho que afinal não é assim tão bem pago – e que só lhe permite ter a vida que tem porque trabalha ainda mais.

A medicina é tudo para ele. E não se imagina a fazer outra coisa. Mas explica ao filho que se quer ter uma vida boa e tranquila, se calhar é melhor aprender desde cedo a jogar à bola. Aprender uma língua estrangeira. Ou tentar ganhar o euromilhões.


(uma crónica ICote, mais todas as sextas-feiras)

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