Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Café, Canela & Chocolate

O site da autora Sofia Serrano. Conversas de uma mãe, que é médica Ginecologista/Obstetra e adora escrever. Com sabor a chocolate.

Café, Canela & Chocolate

O site da autora Sofia Serrano. Conversas de uma mãe, que é médica Ginecologista/Obstetra e adora escrever. Com sabor a chocolate.

Instinto

Avatar do autor , 08.10.22

310530787_680728436950098_4953111064109283147_n.jp

Na maioria dos hospitais recomenda-se a indução do parto às 41 semanas. A partir desta idade gestacional aumenta o risco de morte fetal principalmente porque a placenta pode começar a falhar.


Segui uma grávida que já tinha chegado a está idade gestacional e o bebé ainda não tinha dado ar de querer vir ver o mundo cá fora. Ela estranhava ainda não ter entrado espontaneamente em trabalho de parto, tudo aconteceu muito naturalmente com o primeiro filho, que nasceu de parto normal, e agora… nada.

Concordamos que a indução seria a melhor opção.

Assim, nas 41 semanas de gestação foi internada e começamos o processo com oxitocina, porque o colo do útero estava favorável.

Algumas horas depois, sou chamada para avaliar a grávida de forma urgente. Corri para o quarto, preocupada. O CTG estava normal, mostrando batimentos cardíacos saudáveis do bebé. As contrações começavam a aparecer de forma regular.

Quem não estava nada bem era ela: respiração rápida, suada, muito agitada. A tensão estava normal mas os seus batimentos cardíacos muito acelerados. Como uma crise de ansiedade.

Mas em Obstetricia há tantas situações possíveis preocupantes a excluir que não podemos pensar somente na ansiedade. Fizemos uma avaliação completa e não encontramos nada. Mas ela continuava agitada. “Dra, por favor, algo não está bem. Eu sinto. Podemos avançar para uma cesariana?”

Expliquei que a indução estava a decorrer normalmente, a dilatação a avançar, as contrações regulares, não havia indicação para cesariana. E já tinha tido um parto vaginal, por isso era provável que este também fosse.

Mas as minhas palavras não resultaram, continuava ansiosa e a pedir uma cesariana,sentia que algo não estava bem.

Acabamos por avançar para uma cesariana depois de explicar os riscos, que aceitou. Depois de chegarmos ao bloco operatório e de tudo preparado, começamos e em poucos instantes ouviu-se um choro vigoroso assim que a cabecinha saiu.

Quando tentei exteriorizar o resto do corpo, verificamos que o cordão era muito curto e que havia… um nó verdadeiro.

Possivelmente se tivéssemos insistido no parto normal… tinha corrido muito mal, porque ao descer , o bebé apertaria aquele nó.

Ao perceber a situação, a mãe chorou convulsivamente, com o seu bebé saudável nos braços.“Eu sabia que algo não estava bem, Dra”.

Lição? 
Nunca duvidar do instinto de uma mãe.

Mais histórias no instagram em sofiaserrano_autora ⭐️💫 

Faz o que te faz feliz

Avatar do autor , 06.07.19

momBbyNewbornAfter-1038799540-770x553-650x428.jpg

 

A minha relação entre ser médica e blogger/escritora é mais ou menos o que está expresso nesta frase.

O meu amor é a obstetrícia e não a troco por nada no mundo, mas de vez em quando gosto de encarar novos desafios, conhecer novas pessoas, dar voz à minha alma - e aí salto para o blog e para o computador para escrever desenfreadamente, partilhar ideias, descobrir o mundo.

 

Mas volto sempre.

 

Volto ao corredor dos hospitais, às corrida pelas escadas com o coração a acelerar, às decisões rápidas. Volto ao cuidar e sentir que em cada grávida e em cada bebé vai um bocadinho meu.

À responsabilidade.

Às noites de urgência, aos dias em casa a rever artigos e livros e estudos.

O meu amor é o chorar de um bebé saudável, nos braços dos pais, aquele primeiro grito neste mundo em mudança.


Por isso o blog tem andado mais parado porque estou muito dedicada a este amor de sempre. Mas não está esquecido.

Confissões de uma médica: os verdadeiros heróis

Avatar do autor , 16.05.19

ker-fox.jpg

 

Sou uma médica chata. Daquelas que repete muitas vezes a mesma coisa. Em particular, quando chegamos ao 3º trimestre de gravidez, faço questão em repetir em todas as consultas antes da grávida/casal/família sair a mesma lengalenga:

 

"Por favor estejam atentos aos movimentos do bebé - é a maneira de sabermos que ele está bem. E se houver perda de sangue ou de líquido, contrações de 10 em 10 minutos durante 1 hora, dores de cabeça fortes, alterações da visão, inchaço súbito das face ou outros sintomas fora do normal, façam favor de vir à urgência o mais depressa possível para confirmar se está tudo bem".

 

Há que me diga que prefere não incomodar.  Que, às tantas, é algo sem importância e só vem preencher a urgência. Eu digo que prefiro que as minhas grávidas sejam chamadas de "chatas" e que não seja nada, do que fiquem em casa e haja algo sério. Com a saúde de uma mãe e de um bebé não se brinca.

Acho que acabo por passar a mensagem. E ainda bem.

 

Por isso, quando recebo uma chamada às 2:00 da manhã, sei que é algo importante. Sei que aquele pai, que me liga com voz assustada, que viu a mulher a perder sangue, às 37 semanas de gravidez, e com uma dor que não parava, se lembrou do que eu disse. E que não hesitou e literalmente voou a caminho do hospital, para conseguir chegar o mais rápido possível com a mulher e o filho em segurança ao local onde pudesse receber ajuda. Que me ligou a perguntar se estava a fazer bem, mas no seu interior já sabia. E já estava a caminho do local certo, no timming certo.

 

Já sabia que agir rápido era o que era preciso fazer.

 

Saber o que fazer faz mesmo a diferença. Aquele pai salvou mãe e filho de um descolamento de placenta.  Entrou no momento certo, encontrou a equipa à sua espera e em pouco tempo, com uma cesariana emergente, viu nascer o seu filho, e viu a sua mulher ficar bem - e a confirmação de que mais de metade da placenta estava descolada e que as vidas de ambos estiveram por um fio.

Este pai é o verdadeiro herói, porque conseguiu ter sangue frio e lembrar-se daquela lengalenga que a chata da médica obstetra repetia no final de todas as consultas. 

 

(E o que eu adoro ser uma médica chata e poder ajudar a que no final, tudo corra bem!)

As verdadeiras razões porque os médicos se atrasam nas consultas

Avatar do autor , 06.05.19

woman doctor and patientresize.jpg

 

Gosto de chegar a horas a todo o lado. Aliás, sempre tentei chegar um bocadinho antes do combinado aos meus compromissos.

Gosto de ter tudo organizado, e acho que a maternidade ainda fez com que viva o meu dia a dia com um horário mais apertado e sem grande margem de manobra entre escola, trabalho, refeições, ginásio, futebol, ginástica e afins.

Mas sei que há coisas que não consigo controlar.

E aprendi com o tempo que tenho de ser flexível e adaptar-me, para poder ser a melhor mãe possível, a melhor médica possível, o melhor ser humano possível.

 

Por isso, quando alguém entra no meu consultório para uma consulta de rotina, e ao fim de uma ou duas perguntas sobre a sua saúde começa a chorar convulsivamente sem motivo aparente, sei que tenho de desligar o meu cronometro mental daquela consulta. Sei que muito possivelmente os 20 ou 30 minutos previstos podem ser insuficientes. Sei que quando alguém me abre o coração, mesmo não sendo psicóloga ou psiquiatra, tenho a responsabilidade de como pessoa a ouvir - porque muitas das vezes os nossos problemas de saúde são as nossas angústias e histórias mal resolvidas guardadas bem lá no fundo.

Ela contou-me em lágrimas a história da família: a avó que foi abandonada à porta de uma família rica, que se tornou criada e se apaixonou por um dos filhos do dono da casa. Como tiveram de fugir juntos para poderem ser felizes. Como ela queria uma história de amor parecida mas tinha tido um final exatamente contrário ao que sonhava. Como os filhos não tinham chegado, e agora era preciso decidir se queria desistir de tentar ou inspirar fundo mais uma vez e desafiar a vida.

 

É preciso tempo para ouvir para conseguirmos ajudar na saúde, e nem sempre é possível cumprir tempo e sermos rigorosos.

 

Claro que depois há consultas que demoram mais por outras razões.

Quando a assistente me diz que a proxima utente fala uma língua estranha, não me preocupo porque suponho que quase meio mundo fala inglês. Ou francês. Ou espanhol. E nesses campos acho que me desenrasco bem, mesmo que nalgumas vezes longe da perfeição. Mas quando vejo entrar uma senhora de olhos rasgados que só repete "Japan! Japan!", começo a ficar preocupada. Traz algumas frases escritas em inglês num papel que alguém terá ajudado a elaborar, onde se percebe que está com dificuldade em engravidar.

Ok, percebo o motivo da consulta, mas não é fácil avançar sem comunicação oral.

Por isso, passamos a consulta entre gestos e o Google translator, alternado ingles-japones-portugues e risos da pequena japonesa de 3 anos que acompanhava a senhora, a primeira filha.

 

Bom algum dia iria fazer uma consulta a uma japonesa sem perceber patavina dessa misteriosa língua - e hoje foi o dia!

Mas toda esta logística faz com que a gestão da agenda se torne subitamente caótica e a partir daí funciona o modo bola de neve - sempre a piorar o atraso.

Por isso, deixo um pedido de desculpas gigante a todos os que têm de esperar à porta do meu consultório mais tempo do que era suposto - porque afinal de contas os médicos não são robots e tentam dar o seu melhor com cada paciente.

Confissões de uma médica: quando a vida nos surpreende

Avatar do autor , 18.04.19

hatch-birth_orig.jpg

Uma urgência, a altas horas da noite. Daquelas urgências caóticas em que o trabalho não pára. Chamo a próxima paciente, reparo pela ficha que é uma adolescente de 15 anos.

Vem com a mãe, encolhida, com as mãos na barriga. Não olha para mim, mas percebo que não está bem.

A mãe toma a palavra e diz-me que a filha está desde o jantar com fortes dores de barriga.  Que tem andado muito inchada, que pode ser uma apendicite. Não melhorou com os analgésicos que lhe deu. Está preocupada, mas na urgência geral não sabem o que pode ser, e como ela está no primeiro dia do período resolveram pedir uma avaliação em ginecologia.

A filha continua cabisbaixa e de vez em quando nota-se que tem dor. Como se fosse uma cólica. Reparo que parece ter algum peso a mais, mas mantém sempre os braços e as mãos a envolver a barriga. 

Pergunto se a posso observar, e quando se deita na marquesa percebo o que se passa. Ou pelo menos suspeito. Pergunto-lhe se tem tido o período todos os meses, responde-me que está menstruada. E namorado? A mãe diz imediatamente que não. Que nunca teve namorado e que não é como as amigas, que andam por aí sem terem cuidado. Pergunto-lhe se prefere que a mãe saia um bocadinho para ficar mais à vontade, mas diz que não.

Pouso a sonda do ecógrafo na barriga dela e pergunto se não nos quer contar nada, mas ela firmemente diz que não sabe do que estou a falar. Na imagem, vê-se algo a piscar. E depois uns dedos. E um pé.

A mãe fica a olhar para o ecrã sem perceber nada. A filha começa a chorar.

"Mas o que é que se passa com ela, doutora? Diga-me por favor,  que cada vez percebo menos! E porque é que ela está a chorar?". Tento que seja ela a contar à mãe, mas não consegue.

 

Lá acabo por explicar que a filha está grávida, e que pelo tamanho do bebé, pelas dores e por aquela pequena perda de sangue, parece estar a entrar em trabalho de parto.

A mãe fica em choque e sem reação. A miúda de 15 anos murmura repetidamente um "desculpa, desculpa" e eu fico a tentar perceber o que posso fazer para ajudar naquele momento. É daquelas coisas que não têm um guião, que mexem com confiança, com o nosso papel de mães, com a responsabilidade de cada um,  com uma nova vida no mundo.

 

E no meio de uma noite agitada e de uma mãe e filha em choque, chega mais uma linda menina ao mundo, indiferente a todo o caos à sua volta, saudável e a chorar vigorosamente.

 

 

À noite, no hospital

Avatar do autor , 06.12.18

Captura de ecrã 2018-12-06, às 18.57.14.png

 

O que se passa num hospital à noite? Basicamente tudo e nada. Podemos percorrer os corredores silenciosos e sentir a tensão do espaço - aquele silêncio que antecede uma explosão de adrenalina, que surge sem aviso prévio.

E se num instante tudo parece estar sossegado, no segundo seguinte há um código vermelho e uma invasão de gente a cumprir o seu trabalho o mais rápido e eficazmente que sabem para que se possam salvar vidas.

Para que a grávida com o súbito descolamento de placenta e um bebé em sofrimento possam ter a melhor hipótese. 

Todos os segundos contam.

É preciso correr, de forma bem treinada, e pôr a funcionar a máquina bem oleada que parecia estar adormecida. Em instantes há luzes, um bailado que monta panos e instrumentos cirúrgicos, roupas e luvas e máscaras, o "ok" para começar. E tudo fica em suspenso até se ouvir um choro, inicialmente débil e depois mais intenso. Trocam-se olhares cumplices que dispensam palavras e todos continuam.

E tudo corre bem e volta o silêncio, e esta missão está cumprida.

Mas o hospital nunca dorme.

Dicas para (tentarmos) ter um parto perfeito

Avatar do autor , 20.11.18

columbus,+ga+birth+photography+st.+francis+hospita

 

Lancei um desafio no instagram: o de partilharem se o vosso parto tinha sido como sonharam, e se não, o que mudariam. Recebi centenas de respostas maravilhosas, a mostrar todos os lados da obstetrícia: o bom, o mau, o mais ou menos, o imprevisto e aquele que não se conseguiu mudar.  Na verdade, todas as respostas acabam por ter um ponto comum: o de todas as mães e pais referirem que mesmo nas más experiências, o importante foi ter tudo acabado em  mãe e bebé saudável.

A obstetrícia é um mundo de imprevisibilidade. Na realidade nunca sabemos como será o desfecho da gravidez, mas devemos tentar que corra tudo pelo melhor.

 

Deixo-vos algumas dicas para que possa aproximar-se o máximo possível do vosso parto de sonho:

 

1. Fazer o seguimento da gravidez com um médico e equipa em que confiem. É fundamental que a gravidez decorra o mais tranquilamente possível, que o aumento de peso não seja excessivo e que se sintam bem. Qu sejam esclarecidas relativamente a necessidade ou não de indução, se será melhor um parto vaginal ou uma cesariana.

 

2. Fazer um curso de preparação para o parto, onde sejam esclarecidas todas as duvidas: as contrações, os tipos de parto, a epidural, os sinais de alarme, a rotura de bolsa, o controlo da respiração, entre tantos pontos importantes. Mais uma vez, informação é fundamental para estarmos preparadas e tranquilas para o garnde momento.

 

3. Fazer um plano de parto. Pensar como gostariamos que fosse esse momento, quem queremos presente, se queremos indução, oxitocina, episiotomia, epidural. Se não queremos nada destas coisas. A posição para o parto. Se queremos cortar o cordão, o contacto pele-a-pele, música ambiente. Somos todas diferentes e nem todas sonhamos com o mesmo. Fazer o plano de parto e discutí-lo com a equipa que nos segue é muito importante para que tudo de aproxime o mais possível do que imaginamos.

 

4. Visitar a maternidade onde o nosso bebé vai nascer. Estarmos familiarizados com o local e as pessoas dar-nos-á tranquilidade para o grande momento. Saber os procedimentos habituais, o que precisamos levar, quem nos pode acompanhar, horários das visitas.

 

5. Não criar grandes expectativas - exatamente porque na gravidez e parto, tudo pode mudar subitamente. Quem quer muito um parto normal pode ter uma cesariana porque o bebé ficou pélvico (sentado). Quem tinha pânico do parto normal pode ter um parto fácil e rápido e achar que foi a melhor experiência da vida. Quem tinha muito medo de uma cesariana pode achar que afinal foi bem mais tranquilo e com uma recuperação mais rápida que um parto por forceps anterior. E na realidade, no final, o que interessa é que mãe e bebé estejam saudáveis.

 

Se quiserem, partilhem aqui em comentários as vossas experiências.

E podem ver mais nas stories do instagram.

Data (im)prevista de parto

Avatar do autor , 17.11.18

 

2015-09-10-Estela-19.jpg

Quando o teste de gravidez dá positivo, uma das primeiras curiosidades que queremos ver esclarecida é a data do parto: afinal, quando é que o bebé vai nascer? Qual o dia certo?  

Os obstetras calculam a data do parto 40 semanas após o primeiro dia da última menstruação. Andamos munidos de uma rodinha que nos auxilia nas contas e geralmente dizemos que esse dia é a "data provável do parto". 

"Provável", porque sabemos que só 20% dos bebés irá efetivamente nascer nesse dia. Alguns decidem nascer antes, outros depois. 

Por isso, quando me perguntam, geralmente no 3º trimestre, se acho que o bebé vai nascer na data estimada ou se será antes, eu respondo sinceramente que não faço a mínima ideia. Porque mesmo nas gravidezes em que tudo está a decorrer como esperado podemos ter surpresas de última hora.

 

Pois. A grávida que acabei de ver na consulta e a quem disse que me parecia que ainda não estava na hora porque não tinha contrações nem dilatação pode romper a bolsa ao sair do consultório e lá se vai a data prevista.

O marido que estava com duvidas se devia viajar para outro país na 37ª semana de gestação (porque apesar de não haver sombras de contrações e tudo estar aparentemente bem, e de eu lhe ter dito que ACHAVA que o parto não iria ser nessa semana) pode ter de regressar à pressa para conseguir assistir ao nascimento do filho.

E os meus planos durante uma semana completa para ir ao ginásio depois das consultas são adiados, porque as grávidas que eu ACHAVA que só teriam o parto nas semanas seguintes decidem que está na hora do grande momento.

 

Isto para dizer que a data prevista de parto é meramente uma estimativa e que é muito mais provável o bebé nascer...quando quiser. E que para se ser obstetra, a agenda tem de ser mesmo muito flexível - e o mais provável é que os nossos planos saiam sempre furados. Mas no fundo, desde que tudo corra bem, com mãe e bebé saudável, este é mesmo o charme da profissão ;)

 

Instagram

 

 

 

 

O que importa é que venha com saúde?

Avatar do autor , 08.11.18

Sempre me lembro de ouvir esta frase, desde pequena, no que a grávidas diz respeito : "Não interessa se é menino ou menina, o que importa é que venha com saúde".

Faz parte do trabalho dos obstetras assegurar exatamente isso. Por isso, quando estou a fazer uma ecografia morfológica tenho uma ordem estabelecida na minha mente para avaliar o bebé de uma ponta à outra sem perder pitada, e poder dizer no final do exame aos pais que, pelo que podemos ver,  "está tudo bem". É sempre desta forma que eu espero terminar um exame, o que infelizmente, nem sempre acontece. Há pequenas alterações que provavelmente não serão nada importante e que poderão desaparecer com o crescimento do bebé, e depois há outras bastante graves, que podem mudar tudo. É um momento de muita responsabilidade e é preciso tempo para avaliar todos os pormenores - e mesmo assim, há situações que não conseguimos diagnosticar durante as ecografias.

 

 

Claro que depois há sempre aquela parte do "quer saber se é menino ou menina, ou prefere que seja surpresa?". Na realidade, estou sempre à espera do tal "o que importa é que venha com saúde". Mas o que tem acontecido cada vez mais frequentemente é este ser o ponto fulcral do exame. 

Isto para explicar que por estes dias, o cenário de destaque na ecografia tem sido o sexo do bebé.

 

 

Casais que querem tanto um menino que vão na quinta gravidez, e assim que lhes confirmo que é outra menina, já estão a fazer contas para saber quando podem engravidar outra vez - e tentar na próxima vez uma técnica matemática complicada que envolve idades dos pais, mês da conceção e mais alguma coisa que já não me recordo, para se assegurarem que o próximo bebé será do sexo masculino. Isto porque já tentaram a teoria dos alimentos ácidos, fases da lua e o calendário chinês e nada resultou.

 

Ou a grávida que vai na sexta gravidez e que me diz logo no início da ecografia que só lhe interessa saber que é uma menina, porque já tem cinco rapazes em casa e o seu sonho desde criança é ser mãe de uma menina. Mesmo sendo daqueles bebés que mostra claramente que é um rapaz na primeira imagem, prefiro demorar-me a avaliar tudo antes de lhe dar essa notícia. E tento enfatizar a parte do "esta tudo bem com o seu bebé" mas ela só ouve o "é um menino". Diz-me imeditamente que a seguir vai juntar uma quantia exorbitante de dinheiro para ir a outro país e poder optar por uma técnica de reprodução medicamente assistida que lhe permite escolher o sexo do bebé. Passam-me pela mente todos aqueles casais que tiveram de ouvir más noticias em relação à saude do seu bebé, e volto a reforçar que o importante é que tem um bebé saudável. Mas ela continua focada no seu sonho de ser mãe de uma menina e não me ouve.

 

Na ecografia seguinte, volto a dar a nótícia errada - é uma menina, e o casal queria muito um menino. É o primeiro filho, mas não se imaginam com uma menina. Há lágrimas até. Volto a insistir no "muitos parabéns, têm um bebé saudável", mas não me ouvem.

 

Quando saem do consultório começo a achar que deviamos ter um livro de trocas de bebés - porque no final do dia, há espaço e amor para todos os bebés, mas parece que para todos estarem felizes seria preciso trocar as famílias.

E eu continuo a achar que o mais importante é que venham com saúde.

 

maxresdefault.jpg

 

 

 

Das coisas boas da medicina

Avatar do autor , 02.11.18

Muita gente acha que os médicos têm de ser frios. Duros como pedra. Que aprendem a não sentir e que não têm qualquer ligação com os pacientes. Que é isto que nos ensinam na faculdade: a manter a distancia. Que só assim conseguiremos ser bons no que fazemos, porque nos focamos no diagnóstico e no tratamento, e não nos distraímos com a pessoa.

 

Na realidade, das coisas que mais gosto na medicina, é esta oportunidade de conhecer as pessoas.

Sim, tenho de fazer ecografias, saber se há risco de parto pré-termo e identificar sem pestanejar uma pré-eclâmpsia. Mas bolas, é maravilhoso ver um casal chorar de felicidade por ter finalmente um teste de gravidez positivo ao fim de muitos anos de batalha por um filho. É extraordinário poder observar o crescimento de um bebé nas ecografias, ver a felicidade da mãe quando sente os primeiros pontapés. Fico sem palavras perante a emoção dos pais ao pegar pela primeira vez no filho recém-nascido.

 

E é impossível não partilhar lágrimas e sorrisos - porque as emoções, os sentimentos, o caminho, são partilhados pelo médico e pelo paciente. Não consigo, ao fim de nove meses de consultas e de um parto, não ver as minhas pacientes como minhas amigas - e aquele abraço sentido que me dão na consulta do pós-parto faz-me sentir que é por isto que vale a pena ser médico. Pelas pessoas. Que passam a ser parte de mim. Porque eu também passei a fazer parte da história delas.

 

É a partilha que faz sentido e que nos torna humanos.

 

doctor-hugging-patient.jpg

 

 

 

 

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.